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Os Quadrinhos e a Resistência Negra

 No próximo dia 20 é comemorado o dia da Consciência Negra, um dia dedicado a reflexão sobre a inserção do negro na sociedade, pra se repensar e buscar cada vez mais a tão sonhada igualdade. Uma data também para se lembrar e celebrar a resistência e luta pelos direitos não só aqui no Brasil como em todo o mundo.
 Muita gente não sabe, mas durante a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, um quadrinho, ignorado pela grande industria, fez muito sucesso e ajudou a disseminar a história de Martin Luther King e seus companheiros de luta, e os princípios da resistência não-violenta (confira AQUI).
 Atualmente as HQs atuam por um viés um pouco diferente, elas tem o poder de trazer os negros como protagonistas, algo que mesmo depois de tanto tempo de luta contra o preconceito racial e descriminação, ainda são situações escassas.
 As duas indicações de hoje são quadrinhos biográficos, que contam a história de vida de Carolina Maria de Jesus e John Coltrane. Dois símbolos de resistência, que através da arte, superaram as barreiras raciais.



 Carolina traz a história de uma das primeiras, e mais importantes escritoras negras do Brasil. Autora de Quarto de Despejos, Casa de Alvenaria, Provérbios, e outros livros. Carolina conseguiu alcançar o topo da lista de mais vendidos do Brasil, e teve suas histórias publicadas em diversos países.
 Sirlene Barbosa e João Pinheiro resolveram contar essa história incrível através de uma história em quadrinhos. De sua descoberta pelo jornalista Audálio Dantas (que ajudou Carolina a publicar Quarto de Despejos), passando pela publicação de seu livro, a saída da favela, até a sua morte, longe de qualquer holofote.



 O quadrinho mostra as dificuldades e preconceitos vividos pela autora, que além dos preconceitos raciais, enfrento também o machismo. Acompanhamos também o quanto era precária a situação dela e dos filhos que viviam na favela do Canindé, mas como mesmo assim ela nunca deixou seu sonho de ser escritora sucumbir, por mais improvável que fosse. Além disso a HQ acompanha a ascensão de Carolina e a descriminação que enfrentou mudando-se para um bairro mais nobre e o descaso da mídia com os trabalhos posteriores a Quarto de Despejo.
 O traço de João Pinheiro combina muito com o roteiro, poucos artistas tem a capacidade de representar cenários urbanos como ele, que já possuía experiências com adaptações biográficas (Kerouac).
 Carolina é um dos grandes quadrinhos nacionais dos últimos tempos, e por isso figurou entre os indicados do HQMIX e também do Prêmio Jabuti (que pela primeira vez teve a categoria História em Quadrinhos).



 Os autores de Carolina, se juntaram a Marcelo D'Salete (autor de Angola Janga, Cumbe e Encruzilhada, que logo vai aparecer por aqui) em um bate-papo sobre narrativas negras nas HQs. Essa conversa aconteceu na Quanta - Acadêmia de Artes, e o pessoal do canal Papo Zine fez o grandessíssimo favor de registrar: 





 Agora vamos para a segunda indicação, o quadrinho que traz a história do gênio do Jazz, o magistral John Coltrane, que influenciou pessoas não só por sua musicalidade única, mas principalmente pelo jeito com que tratava a música, como quase uma religião:


 " O som nasce, cresce, propaga-se na natureza do mundo. Tudo é som, tudo é silêncio e contemplação. Tudo nasce, morre e se regenera. Tudo flui do Divino por sua própria vontade. Tudo aquilo cuja essência é o som."

 Através da trajetória de Coltrane acompanharemos as mudanças nos Estados Unidos e no mundo. De sua infância pobre, os amores, a saída do anonimato junto de Miles Davis, problemas com drogas, a violência do racismo, a luta pelos direitos civis, tudo o que fez com que ele fosse peça central na cena jazz dos anos 50 e 60.


 A HQ é fruto da mente do italiano Paolo Parisi, ilustrador e design gráfico, e um grandíssimo fã de jazz.
 Assim como as musicas de Coltrane, o roteiro tem "um quê" de experimental, e não apresenta a vida do músico em sua linha do tempo correta. O autor brinca com a ordem dos acontecimentos, de uma forma que o leitor possa entender a relação entre o passado do artista e suas decisões na vida adulta.
 Os capítulos da história recebem os nomes das faixas do álbum que é considerado a obra máxima de Coltrane, A Love Supreme de 1965. E é mais que recomendado utiliza-lo como trilha sonora para a leitura.


A arte brinca com as notas musicais e instrumentos, representando as emoções e "alucinações" dos experimentais jazzistas que acompanharam a trajetória do protagonista. Vale também ressaltar a utilização de luz e sombra, como os holofotes e momentos de "escuridão" da vida de Coltrane.

 As duas indicações de hoje trazem exemplos de negros que saem do estereótipo. Pessoas que enfrentaram as dificuldades e venceram através de seu talento, e que devem ter suas histórias contadas, devem ser exemplo para as novas gerações. A representatividade importa! E ela faz toda a diferença.

"Que é incrível, quantos de nóiz senta no fundo da sala pra ver se fica invisível.
Calculo o prejuízo!
Nossas crianças sonha que quando crescer vai ter cabelo liso.(shiii)"
Emicida - Cê lá faz ideia

 Vale lembrar que além de histórias com negros como protagonistas, é necessário a inserção dos negros na produção e criação dos quadrinhos. O impacto representativo nesse caso é ainda maior.
 Infelizmente este é um ponto no qual ainda são raros os exemplos. Podemos citar aqui no Brasil, Maurício Pestana, um dos primeiros a tratar questões raciais em suas charges; Marcelo D'Salete (já citado aqui anteriormente), que está lançando sua nova obra Angola Janga que reconstrói a história de Palmares. Lá fora um dos nomes que se destacam é o de Ta-Nehisi Coates autor da aclamada fase atual do Pantera Negra na Marvel Comics.

Por hoje é isso, muito obrigado.

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